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segunda-feira, 2 de maio de 2011

Quem inventou o cachorro vegetariano?

Por: Rodrigo Turrer, Humberto Maia Junior e Marcelo Moura
Fonte: Revista Época

A moda de negar carne a animais carnívoros mostra que a humanização (cada vez maior) dos bichos domésticos não tem limites – e pode prejudicá-los.

Cachorros e homens vivem juntos há pelo menos 12 mil anos, numa relação contínua que se revelou benéfica para as duas espécies. Sem a proteção do homem, dificilmente o cão teria chegado aos dias atuais. Não era um predador de sucesso. Mas revelou-se brilhante no poder de transmitir conforto e confiança aos seres humanos – e de acompanhar as mudanças de seus hábitos e valores. O bicho ganhou um papel afetivo que antes era desempenhado por parentes e vizinhos. Agora, o poder de adaptação dos cachorros está novamente em teste. Pessoas que não querem comer carne – por implicar a morte de um outro ser vivo – estão impondo a seus cães domésticos dietas vegetarianas ou veganas, ainda mais radicais. Os veganos não comem nenhuma espécie de proteína de origem animal, como leite. Aplicar esses valores aos animais de estimação representa, para muitos, uma manifestação de respeito. Mas obrigar cães e gatos a viver de vegetais e passar o dia sozinhos dentro de apartamentos representa uma prova de carinho?

A treinadora de animais Ana Aleirbag, de 22 anos, não come um único pedaço de carne desde 2007. Nem ela nem seus seis cães. Ana estendeu aos bichos de estimação a dieta vegetariana que adotou para si mesma, na mesma época. “Era incoerente eu não comer carne e dar uma ração com restos de cadáveres para minha melhor amiga”, diz, referindo-se a Fly, uma cadela da raça border collie de 5 anos. “Consultei o veterinário, planejei a transição alimentar e nenhum deles estranhou a mudança.” Eles obviamente não teriam meios de se queixar, mas é provável que adoecessem se a troca de dieta fosse muito nociva. Ana serve uma porção de ração vegetariana misturada a frutas. Em horário alternado, dá leite de vaca, iogurtes e queijo branco – fontes de cálcio e proteína animal.

O desenvolvedor de software curitibano Anderson dos Santos, de 27 anos, foi além. Impôs a sua vira-lata Cindy uma alimentação vegana – ou seja, inteiramente à base de vegetais, sem nenhuma proteína de origem animal. “Não tinha cabimento causar sofrimento a um bicho para alimentar outro”, diz Santos. Isso foi há cinco anos. Hoje tem outros dois cães veganos. Para propagar a filosofia, traduziu para o português o livro Cães veganos: nutrição com compaixão, do veterinário e pesquisador James O’Heare. “Hoje, eu mesmo fabrico a ração caseira com suplementos de cálcio, vitamina B12 e zinco”, afirma Santos. O mais famoso cão vegano do mundo foi a cadela Bramble. Quando morreu, em 2003, ela somava 27 anos e 11 meses de vida – o terceiro cão mais longevo registrado pelo Guinness book. Alimentava-se de uma pasta com arroz integral, lentilhas e vegetais orgânicos. Sua dona, a inglesa Anne Heritage, de 52 anos, é vegana radical. “Ela viveu feliz”, disse na ocasião da morte.

Mas, esperem um pouco – não há algo de estranho nessa aparente normalidade? Cães pertencem, por definição, à ordem dos carnívoros – junto com os felinos. O poodle cheiroso que dorme no sofá da sala é geneticamente da mesma espécie do lobo selvagem, que se alimenta de carne. Aquilo que se chama erroneamente de Canis lupus familiaris, o cão doméstico, é uma invenção humana sem correspondência exata na natureza. Cientificamente, só há o Canis lupus, que se apresenta em vários formatos. Todos eles são carnívoros. Transformá-los em onívoros como nós, criaturas que comem de tudo, foi o primeiro passo da humanização alimentar desses animais. Torná-los vegetarianos, e, agora, veganos, apenas aprofunda o fenômeno conhecido como antropomorfização – a compulsão de imputar atitudes e sentimentos humanos ao que nos cerca no mundo natural. No passado, fizemos isso criando deuses com características humanas. Agora, humanizamos os cachorros.

“Todo dia alguém me pergunta ‘Como alimentar meu animal sem carne’”, diz Andrew Knight, veterinário, especialista em bioética e pesquisador do Centro Oxford para Ética Animal. Andrew mantém um site em cinco línguas sobre o tema (vegepets.info), com mais de 5 mil acessos diários – só do Brasil são registradas 800 visitas por semana. O hábito de alimentar animais com vegetais começou nos Estados Unidos, no fim dos anos 1960. Grupos de veganos radicais passaram a considerar natural alimentar seus bichos de estimação com sua própria dieta – impondo a criaturas irracionais uma interdição ética ou religiosa essencialmente humana. Como outros orientalismos, esse também é uma invenção que nada tem a ver com a religião ou a ética originais. Na Índia, berço das crenças hinduístas abraçadas no Ocidente, cães e gatos não são tratados com cuidados humanos. “Algumas tradições hindus os veem como animais impuros. São maltratados mesmo”, diz o paulistano Erick Schulz, diretor do Instituto de Cultura Hindu Naradeva Shala, em São Paulo. “Lá tem veterinário para cavalo e para elefante, mas são raros os veterinários que atendem cães e gatos.” Os cães e os gatos da Índia comem carne à vontade, embora a população de religião hinduísta não coma. “A cultura hindu respeita o animal como realmente é: se ele é carnívoro, come carne, se não é, não come”, diz Schulz.

A dieta vegetariana para cães e gatos tem fortes opositores – mesmo entre vegetarianos. Presidente da Sociedade União Internacional Protetora dos Animais (Suipa), com sede no Rio de Janeiro, Izabel Cristina Nascimento tem 60 anos e não come carne desde os 18. Nem por isso acha razoável impor sua dieta a um cão. “Como posso levar meu cachorro a comer cenoura e soja? O animal tem o dente canino mais acentuado justamente para comer carne”, diz ela. Aulus Cavalieri Carciofi, médico veterinário especialista em nutrição de cães e gatos da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é vegetariano há 20 anos. Seus quatro cães, não. “Não como carne porque não quero matar animais. Mas para conviver com eles é preciso entendê-los”, afirma. “Se a ideia de permitir a entrada de carne em qualquer forma em casa é inaceitável para um vegetariano, que ele tenha um bicho com outros hábitos. Um passarinho, por exemplo.”

Gatos e cachorros precisam mais da proteína animal do que os homens. “O vegetarianismo para bichos de estimação é antinatural. O organismo do animal aproveita melhor a proteína de uma ração feita com proteína originária do frango do que da soja”, diz Mario Marcondes, diretor clínico do Hospital Veterinário Sena Madureira, em São Paulo. Com uma dieta pobre em proteína animal, o cachorro pode acabar consumindo os próprios músculos para gerar energia. Para os gatos, a dieta vegetariana é ainda mais arriscada. Os bichanos dependem da carne para metabolizar a taurina, composto envolvido na formação e no funcionamento da retina. Sem taurina, os gatos podem desenvolver cegueira e problemas cardíacos. Seria um exemplo extremo de como uma excentricidade humana, revestida de carinho, pode prejudicar dramaticamente o animal que gostaria de proteger. Vestir, carregar como um bebê e lavar frequentemente os bichos podem ser atos cruéis ou opressivos, que ferem a anatomia e a natureza do animal. Mario Gisi, subprocurador-geral da República, é contra esse tipo de coisa. “Ainda que muitos donos sejam bem-intencionados, algumas práticas não deixam de ser cruéis”, afirma. Izabel, da União Internacional Protetora dos Animais, também critica. “É um erro impor nossas crenças ao animal. Daqui a pouco vão querer que ele caminhe em duas patas”, diz ela. Izabel condena a “humanização” animal que passa pela utilização de fantasias e roupas de marca: “Roupinha da Valentino e coleira da Gucci? Será que o cão gosta? Duvido.”

As transformações na relação entre pessoas e bichos vêm a reboque de mudanças na demografia humana. Nos últimos 40 anos, a população brasileira migrou do campo para a cidade e das casas para apartamentos – levando seus animais com ela. Na natureza, quando o espaço de habitat encolhe, a tendência das populações é cair. Com cães e gatos está ocorrendo o contrário. Quanto mais confinados, mais os humanos parecem adotar animais. O senso comum sugere que o isolamento das cidades e a redução das famílias têm um papel relevante nesse fenômeno. Há hoje no Brasil 34,4 milhões de cães, um para cada seis brasileiros. Quando se põem os gatos na conta, a relação é de um animal para cada quatro humanos. Os fabricantes de rações dizem que 44% das casas brasileiras têm animais de estimação. Vive entre nós a segunda população canina do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos.

Embora se especule que o Homo erectus já perambulava na savana africana com uma espécie de canídeo há 500 mil anos, o registro fóssil mais antigo da convivência entre cães e humanos é de 10 mil anos antes de Cristo. O cão foi a primeira espécie a ser domesticada, e sua evolução está intimamente associada à evolução humana. É por isso que eles nos olham nos olhos tão atentamente e parecem de alguma forma reagir a nossas inquietações e vontades. É uma especialização. Os lobos selvagens são famosos pela capacidade de resolver sozinhos problemas intrincados. Os lobos domésticos são especialistas em obter nossa ajuda para fazer o que querem: comer, correr, coçar, lutar... O cachorro não teria vivido até hoje e prosperado demograficamente sem seu padrinho humano. O psicólogo evolucionista John Archer, da Universidade de Central Lancashire, escreveu num artigo já clássico que os cães são especializados em manipular aspectos de nossa mente que nos levam a tratá-los como crianças, protegendo e alimentando. Seriam parasitas. “De um ponto de vista darwiniano, é uma relação intrigante”, diz Archer. Ela implica prover a sobrevivência de outra espécie sem receber em troca nada que aumente as chances humanas de sobrevivência. Diferentemente de uma relação simbiótica, em que as duas espécies melhoram suas chances reprodutivas, a associação entre homens e cãos, diz Archer, só tem um beneficiário: o simpático parasita peludo que pode custar, em dez anos, algo como R$ 70 mil. Por que não gastar esse tempo e esse dinheiro com seres da mesma espécie?

Escrita no século VIII a.C., a Odisseia, de Homero, mostra que a conexão emocional entre homens e cães é antiga. Quando o guerreiro Ulisses finalmente volta para casa, depois de 20 anos ausente, é o cão Argos quem primeiro o reconhece. Além de zelar pela segurança da casa, os cães tocaram ovelhas onde o homem se dedicou ao pastoreio, farejaram a presa quando o homem achou por bem caçar e puxaram trenós na neve. Mas, acima de tudo, eles fizeram companhia a seu provedor. Talvez agora, depois de 12 mil anos de coevolução, o cão esteja diante do desafio de tornar-se gente.

Eram 14h04 da quinta-feira da semana passada quando o sino tocou três vezes no Pet Memorial, em São Bernardo do Campo, São Paulo. Foi o sinal para que a fonoaudióloga Kátia Pinho, de 34 anos, e o representante comercial Marcelo Milane, de 33, se levantassem da antessala onde s estavam e se dirigissem para a pequena capela onde, dentro de um caixão rodeado por flores, estava Duda, uma west white highland terrier de 14 anos. Duda morrera às 22 horas do dia anterior de uma doença genética. Kátia, óculos escuros e lenço branco nas mãos, e Marcelo velavam a cachorrinha. “Foi nossa primeira filha”, diz a fonoaudióloga, que tem três filhas – biológicas – com o marido. “A Dudinha dormia na minha cama. Quando a minha filha do meio vinha deitar, ela rosnava de ciúmes, do tipo que existe entre irmãos.” Outra demonstração do ciúme “fraternal” ocorria quando Kátia chegava em casa: “Primeiro, eu tinha de dar atenção a ela. Só depois às crianças.” Diz o marido, Marcelo: “Ela deu muita alegria a nossa família. Merecia um final digno”.

Fazer velório para um cão representa humanização em estágio avançado. O ritual humano teria se originado na Idade Média como forma de garantir que a pessoa havia realmente morrido. Hoje, é uma construção intelectual abstrata que tem por objetivo homenagear o morto – impossível de ser compartilhada por qualquer animal. Ainda assim, o velório canino tem os elementos da cerimônia tradicional e é tão triste quanto ela. “Já vi homens grandes chorando como crianças pela morte de seu cachorro”, diz Luiz Henrique Guimarães, veterinário da Pet Memorial. Guimarães diz que são realizadas cerca de 200 cerimônias por mês. Os preços variam conforme o serviço. O velório seguido de cremação varia de R$ 1.000 a R$ 3 mil.

Quem ama paga tanto para prolongar a vida do bichinho amado quanto para proporcionar uma suposta felicidade a ele. O mercado de animais de estimação no Brasil movimenta R$ 11 bilhões por ano. Em janeiro, foi inaugurado em Copacabana o Pet Delícia, um restaurante de comida caseira para bichos de estimação. O Hospital Veterinário Sena Madureira, em São Paulo, conta com recursos como tomografia computadorizada e terapia experimental com células-tronco. Por R$ 700, é possível manter-se perto do bichinho convalescente num quarto particular com cama para o dono. “Quem tem um animal precisa assumir responsabilidades. Não vejo nada de mais em gastar o que puder para salvar o meu cão”, diz o diretor de teatro Wagner de Miranda, de 45 anos. Ele gastou R$ 3.500 em diárias para dormir ao lado de Schui-tah, seu cão da raça lhasa apso. “Ficar perto ajudou na recuperação.” Os animais passaram a ser aceitos em locais onde antes sofriam restrições. Shopping centers, por exemplo, foram obrigados a aceitar que os donos passeassem com seus pets. O mesmo ocorreu com restaurantes, hotéis e apartamentos. Segundo Rosângela Ribeiro, gerente no Brasil da Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA, na sigla em inglês), esse movimento é antigo em países como Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha.“O cão se tornou um membro da família, por isso a pessoa quer levá-lo para os locais que fre-quenta”, diz Rosângela. “Mas é preciso pensar no animal. Será que é bom para ele passar quatro horas num restaurante enquanto a pessoa come?”

Existe alguma explicação lógica (além do parasitismo predatório) para uma sociedade que humaniza cães e investe neles quantias que poderiam contribuir para a melhoria da vida humana? Aparentemente, sim. Um estudo divulgado há duas semanas pelo Departamento de Saúde de Michigan, nos EUA, revelou que donos de cães são 34% mais saudáveis do que pessoas que não têm animais de estimação. “A mera presença do animal de estimação pode reduzir a pressão arterial, e donos de animais de estimação geralmente têm baixo nível de colesterol”, afirma Dennis Turner, pesquisador da Universidade de Zurique, na Suíça. A ciência encontrou uma explicação bioquímica para os benefícios da convivência. Em 2009, os cientistas Miho Nagasawa e Takefumi Kikusui, da Universidade Azuba, provaram que cães são capazes de estimular a liberação de oxitocina – um hormônio produzido no hipotálamo que combate estresse e depressão, além de influir nas relações sociais. Ao olhar para seus cachorros, 55 pessoas experimentaram um aumento de oxitocina semelhante ao que ocorre nos momentos de convivência entre mãe e filho. Mas, ao contrário de uma criança, o cão não carrega a herança genética dos pais e não se cria, em torno dele, a expectativa de construção do futuro da sociedade. Nesse aspecto, a produção de hormônios estimulada pelo bicho, por mais gratificante que seja, é quase uma fraude da natureza – como o cão que ocupa o lugar afetivo de um ser humano, como o cão que não come carne.

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